sábado, 1 de outubro de 2011

Para o retrato de um amigo

Aviso a partir desta linha aos raros leitores que vou cometer uma violência, um abuso, um ato arbitrário. Vou falar de um poeta fundamental de Pernambuco, do Brasil, da América, sem falar uma só linha de sua poesia. E para isso devo ter e possuir e haver punho de ferro, sangue metido em frigorífico. Porque vou falar de Alberto Cunha Melo, sem lhe citar um verso. Vou falar de um amigo.

Por Urariano Motta


Tenho agora mesmo, em minha mente, a sua imagem no Bar da Bete, no tempo em que havia o Bar da Bete. A pessoa dele me vem como em uma foto onde se escreve abaixo, Olinda, 1989. E depois, em letras pequenas: "nós atravessamos o tempo e não percebemos". Não fosse o sol de Pernambuco, diria que essa imagem vem entre brumas. Por que recebo assim essa foto na memória? Imagino que essa dissociação entre clima local e lembrança ocorre porque o poeta sempre era encontrado ali mais à noite, ou no fim da tarde, quando o sol declina sem vestígio do clarão. Ou talvez porque seja próprio das fotos que guardamos virem em preto e branco, como uma foto antiga, que vai perdendo a sua tonalidade. E as tonalidades, sabe-se, perdem-se assim sem ruído, caladas, traiçoeiras e ferinas como um câncer. Abandonam o vigor no escuro da noite, furtam-se da vida com a luz dos dias. 

Em Bete, o poeta sempre se encontrava em sua mesa. Aquela vid a secreta que me envergonhava, a de ser um escritor, só um escritor, só e somente e mais nada, porque seria tudo, Alberto exibia como um despudorado em seu lugar, que não poderia ser de outro, a falar entre sombras, sem ostentação, recuado em uma parede, ao fundo do Bar da Bete: "Eu sou um poeta, o meu nome é Alberto da Cunha Melo". E eu via, embora ele não proclamasse, não erguesse a voz, nem se vestisse com ouro e pedras reluzentes, eu via, como uma pancada funda em meu peito, porque eu via pelos olhos do sentimento, eu via alumbrado e fingia nada ver, eu via, "atenção, canalhas, eu sou a dignidade da literatura"... 

Nesta altura, até para manter o frio dos árticos no sangue, devo lembrar também a pessoa de Bete, uma dona de bar meio estranha, quase tão desequilibrada quanto a sua fauna querida. Ela era amiga de Rodolfo Mesquita, e temia com terror fascinado que o pintor Rodolfo Mesquita reaparecesse, porque Rodolfo era um demônio que pintava, e poderia, naqueles tempos, beber mais que um demônio quando pinta o sete. Ela era amiga de Abdias, o sociólogo e jornalista, a quem ela se referia sempre com o respeito dos pobres que admiram quem não é do seu meio. 

Ela era amiga de muitos malucos, a quem atraía por ser também uma semelhante. Ela era amiga enfim de toda gente, por ser dona de um talento de cozinhar com as combinações mais inesperadas, loucas, que resultavam em um produto saboroso. Mas era amiga acima de tudo do poeta Alberto da Cunha Melo, por dar a ele privilégios que nós, os outros, jamais poderíamos sequer tentar. A saber, primeiro: um lugar exclusivo, encostado à parede, de frente para o mar de Casa Caiada. A saber, segundo: a compra exclusiva de garrafas de conhaque, servidas tão somente a Alberto, todas as tardes e noites, que ele bebia, gole por gole, bebida que pagava quando chegasse o fim do mês. Às vezes o salário do poeta atrasava, o dia 30 não vinha, a sede em algumas estações era maior, e Alberto entrava nos conhaques do outro mês. 

Nesse tempo eu era, mais que estava, bancário. Tinha que sobreviver de alguma forma, esta é a verdade. E para sobreviver sem me trair além do suportável, embora já houvesse ido além do que deveria, eu saía a beber com colegas de trabalho, e os arrastava para o Bar da Bete, sob o pretexto de comer uma fritada de siri. Para quê? Houve uma ocasião em que me fiz acompanhar de um gerente de banco, e já vêem todos o quanto eu ultrapassara a fronteira do razoável. 

Nessa infeliz vez, avistando ao fim do Bar o nosso poeta, saudei-o, ele respondeu, e continuamos cada um na própria mesa, a minha, com o gerente e demais funcionários, a dele, ele sozinho, enquanto escrevia em uma folha de papel algo que anos mais tarde saberíamos. Para engrandecer o meu gesto, e caminhar na zona anfíbia da literatura e da sobrevivência, eu disse aos colegas de mesa que aquele homem ali era um grande poeta. 

- Aquele? 

O animal, que era tão importante no comando de uma agência bancária, queria dizer, aquele a fumar cigarro sem filtro, a beber algo que não é uísque, vestido sem roupas de grife, com os óculos de armação pesada, aquele, enfim, com todos os sinais exteriores de não ser uma pessoa de classe? 

- Sim, aquele, respondi. 

Então o animal gritou para Alberto, gritou como se fizesse uma saudação, pior, como se enviasse uma ordem, típica de quem possui o espírito formado por valores do câmbio de moedas. 

- Se você é poeta, improvise uma poesia, agora! Vamos, é uma poesia e duas cervejas, por minha conta. 

Eu vi então o poeta não ouvir. Eu vi então o poeta perder o sentido da audição, e mais concentrado olhar o papel sobre a sua mesa, a perpetrar aquela poesia que não se improvisa, que vem como fruto do esforço de toda uma vida, de leituras e talento e espírito que se amadurece no fogo, lento, mais lento que o câncer, a poesia que vence a morte. 

Então, ao animal indócil tentei explicar que o gênero do poeta era outro, que ele não era bem um violeiro repentista, que ele não possuía estrofes e sílabas fixas, que a sua poesia... Em vão. Há um limite para a ignorância no qual conhecimento nenhum atravessa. É uma couraça mais dura que a pedra. O homenzinho contestava, indignado: 

- Ah, se ele faz o mais difícil, faz o mais fácil. Qualquer Camões sabe improvisar.... 

E eu fiquei então com a pecha de mentiroso, pois apontava como poeta um homem que não sabia sequer o mais fácil, cantar um poema. Certamente, esse “poeta” era um louco ou um fracassado, porque nem operava na vida prática, isto é, jamais fizera qualquer investimento em qualquer letra bancária, o que se notava pela aparência, nem jamais operara na vida cultural, porque era incapaz de realizar as maravilhas que o dinheiro paga. Maldito deveria ser o espírito que não se regia pela recompensa de duas cervejas... 

Esse amigo que ora canto, nesse árduo escrever de pulso rijo e gelado sangue, é um homem que sobrevive na contradição de todo artista, como um exemplo vivo do destino de quem cultiva o que não se troca em uma sociedade prosaica e porca. Porque assim dizem os homens de poder e prata: 

- Fazer poesia é fácil. Compor uma música é simples. Pintar um quadro qualquer um pinta. Escrever essa coisa que esse idiota aí escreve é uma imbecilidade. Dura e difícil é a vida de quem trabalha pesado, de quem possui o coração aos pulos conforme a cotação da Bolsa de Valores, de quem perde o sono em razão do movimento perturbador do dólar. Pesado e massacrante é comandar um batalhão de empregados, todos simulados e bandidos até prova em contrário. O dinheiro que ganhamos vem ao fim de uma guerra. Matamos leões todos os dias. Agora, sentar-se em um lugarzinho em silêncio, beber uma dose e fumar um cigarro, enquanto se escreve, “ó minha flor, ó meu amor”, é um paraíso. 

Por isso acham, com muita naturalidade, que gente assim vive com muito pouco, quase nada, porque, afinal, são poetas. Gente enfim que não liga para essas coisas, a saber, comer bem, beber melhor, possuir casa confortável, carro importado, mulheres, amantes, planos de saúde que quase enganam a morte. Bom, se isto não conseguem, bem que conseguem deixar o cidadão morrer com todo e total conforto. Pois melhor é ser infeliz com muito dinheiro. Pero os artistas, não. São felizes com pouco, com nada, menos que nada, são um fenômeno. Compõem um acorde, recebem um trocado. Escrevem cinco linhas, ficam famosos. Pintam um quadro, ficam conhecidos além do seu tempo. Nós, homens práticos, jamais seremos imortais. (Todos temos onde cair mortos, querem dizer. Os artistas que gozem a sua imortalidade, porque não têm onde cair duros para sempre.) Os artistas se contentam com pouco. Nós, os homens práticos, não. 

No entanto esse amigo, a viver nessa contradição do sublime e da pobreza, jamais se acostumou aos gostos nos quais é obrigado a viver. Percebem? É natural que um homem, de tanto não conhecer o sabor de vinhos envelhecidos, de qualidade, comece a gostar de vinhos menos nobres e passe a olhar desconfiado para as excelências que jamais irá conhecer. Há quem construa até uma teoria, um sistema de gosto para enquadrar o seu modo possível de ser. O poeta Alberto da Cunha Melo, não. Houve uma vez em que eu, depois de bem observar as cervejas que ele bebia nos bares, convidei-o para a minha casa, para que assistíssemos juntos a um programa de televisão dedicado a Canhoto da Paraíba. Que fiz eu? Pedi a meu filho para que comprasse as marcas de cerveja que eu sabia ser do costume do poeta beber. 

O meu amigo se angustiou: 

- Por favor, essa daí não. Se puder, mande buscar uma cerveja melhor. Eu bebo as baratas, porque não posso pagar outras. 

É esse mesmo homem que é capaz da maior generosidade. Dirão os muito cínicos, “quem tem pouco a oferecer, é generoso com a riqueza que jamais possuirá”. Rotundo engano. Nos tempos em que o poeta muito podia oferecer, ou seja, no tempo em que ele era editor do melhor caderno cultural do Nordeste, o suplemento do Jornal do Commercio, não poucas vezes, muitas vezes vieram à luz, por sua conta e risco, poetas iniciantes, escritores novos, estudantes de jornalismo, artistas de toda sorte e gênero. Os protegidos que ele semeou hoje estão por cima na imprensa e nos bons empregos públicos. Ainda há pouco, na semana que passou, fui testemunha de mais um ato seu. 

Eu vi o poeta pedir a uma pessoa ligada ao novo governo de Pernambuco que mantivesse o emprego de alguns velhos conhecidos na imprensa do estado, porque afinal todos eram pais-de-família, e precisavam viver, entende? E com o mesmo ímpeto, antes, o ano passado, vi o poeta partir uma torta ao meio e me dar de presente, no dia do seu aniversário. Logo ele, que tem mulher, filho e sogra que adorariam o prazer de um pouco mais de tempo com a delícia. Não adiantou conselho, ele exigiu que eu levasse para casa a melhor parte. Este é o meu amigo. Generoso com o pouco, generoso com o muito, generoso com o que poderá e poderia ter. 

Se querem um motivo para esse retrato de um poeta vivo, eu lhes digo. Encontrei Alberto neste começo de ano abatido e triste. Tive vontade de lhe dizer, “meu amigo, este ano é o começo do melhor tempo de nossas vidas. Será que não você não percebe as promessas que se anunciam?” Vontade tive, mas um pudor e uma vergonha imensa me fez cair em silêncio. Isto não é chacota, eu me disse, não é assim que se responde a uma tristeza objetiva e subjetiva de um homem maduro, eu senti. Por isso, pelo que eu não lhe disse, eu lhe digo ao fim estas últimas palavras de Sancho Pança a Dom Quixote: 

- Não morra Vossa Mercê, meu amigo, mas tome meu conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que um homem pode fazer nesta vida é deixar-se morrer sem mais nem menos, sem que ninguém o mate, nem dêem cabo dele outras mãos que não as da melancolia. Olhe, não seja preguiçoso: levante-se dessa cama e vamo-nos para o campo vestidos de pastores, conforme combinamos. Quem sabe, atrás de algum bosque iremos encontrar desencantada a senhora Dulcinéia... 

Por isso, ao poeta Alberto da Cunha Melo dedico esse retrato. 

Olinda, janeiro de 2007. 

Texto enviado pelo autor em 1º de outubro de 2011

Um comentário:

  1. (comentário enviado por e-mail e postado por Castor)

    Castor, obrigada por esta lindeza. É tão bom quando a manifestação de uma pessoa faz a gente se sentir com mais coragem e orgulho de se ser ser humano!!! Não é a dor inevitável da vida que nos assusta, é a sua perda de sentido. O retrato de um amigo do Urariano Motta dá sentido pleno e grandeza à dor. Obrigada. Gabriela

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